O Ministério da Fazenda, por meio da Secretaria de Reformas Econômicas (SRE), divulgou em 10 de outubro de 2024 o relatório final sobre os impactos econômicos e concorrenciais das plataformas digitais no Brasil. O estudo, resultado de uma análise extensa, teve início com uma consulta pública concluída em maio de 2024 e visa orientar políticas para modernizar o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC).
O texto foi detalhado em uma coletiva realizada no mesmo dia, às 10h. Participaram Marcos Pinto, secretário de Reformas Econômicas; João Brant, secretário de Políticas Digitais da Secom/PR; Lilian Cintra, secretária de Direitos Digitais do Ministério da Justiça; e Alexandre Ferreira, diretor de Programas da SRE. Foram apresentados os principais resultados da consulta pública sobre a regulação das plataformas digitais e discutidas propostas de novas normas para o setor, com o objetivo de promover uma concorrência equilibrada por meio de mecanismos adequados aos desafios impostos pelas grandes empresas tecnológicas.
O relatório ressalta a crescente influência de plataformas como marketplaces, redes sociais e serviços de streaming na economia brasileira, transformando mercados e estruturas econômicas. Essas plataformas, impulsionadas por efeitos de rede, coleta de dados e ecossistemas digitais complexos, representam tanto oportunidades quanto desafios para a concorrência.
Durante a coletiva, o secretário de Reformas Econômicas, Marcos Pinto, comentou que uma das preocupações é a possibilidade de práticas anticompetitivas impedirem o crescimento de outras empresas: “Nossa grande preocupação é que essas grandes plataformas empresas digitais possam adotar práticas anticompetitivas que impeçam outras empresas de crescer e se desenvolver, inovando no país“. Ele também observou que a rapidez com que o mercado digital evolui é um dos fatores que dificultam a aplicação das regras concorrenciais tradicionais: “Esse é um mercado extremamente dinâmico, as coisas acontecem muito rápido“.
João Brant, secretário de Políticas Digitais da Secom/PR, destacou a necessidade de articulação entre os diferentes órgãos reguladores: “Há uma necessidade de o Brasil aproveitar e saber jogar com os diferentes órgãos que têm obrigações relativas ao espaço digital, trabalhando em conjunto, de forma articulada“.
Lilian Cintra, secretária de Direitos Digitais do Ministério da Justiça, apontou que “a questão antitruste é o aspecto mais importante do digital porque é um tema estruturante“, destacando a importância de um mercado competitivo no setor digital. Já Alexandre Ferreira, diretor de Programas da SRE, mencionou que as propostas reforçam prerrogativas já existentes, como a coleta de informações pelo Cade para uma análise mais detalhada dos mercados digitais. “O que estamos propondo não difere tanto do que o Cade já faz hoje, mas seria fortalecer algumas prerrogativas para a coleta de informação, para que o Cade possa traçar diagnósticos com mais subsídios sobre mercados, tanto digitais quanto outros mercados”, resumiu Ferreira.
Desafios Apontados no Relatório
O relatório da Secretaria de Reformas Econômicas (SRE) identifica uma série de desafios específicos que, segundo a SRE, as plataformas digitais apresentam para o sistema de defesa da concorrência tradicional. Esses desafios decorrem das características únicas dessas plataformas, que, de acordo com a SRE, diferem dos modelos de negócios convencionais. Abaixo, um resumo dos principais desafios conforme apresentados no relatório.
1. Efeitos de Rede
De acordo com o relatório, as plataformas digitais operam com fortes efeitos de rede, que ocorrem quando o valor de uma plataforma aumenta conforme cresce o número de usuários. Segundo a SRE, isso favorece plataformas já estabelecidas e cria dificuldades para novos concorrentes entrarem no mercado.
- A SRE argumenta que o aumento contínuo de valor à medida que a base de usuários cresce favorece as plataformas dominantes.
- Esses efeitos de rede podem criar barreiras à entrada, tornando mais difícil a competição com plataformas já consolidadas.
- A concentração de mercado, segundo a SRE, é um possível resultado dessa dinâmica.
2. Mercados de Múltiplos Lados
A SRE também aponta que as plataformas digitais operam frequentemente em mercados de múltiplos lados, conectando diferentes grupos de usuários (ex.: consumidores e anunciantes). Essa estrutura, conforme o relatório, torna a análise concorrencial mais complexa.
- A SRE sugere que essas plataformas, ao conectar diferentes grupos, controlam o acesso entre eles, o que pode afetar a concorrência.
- A regulação tradicional pode não capturar adequadamente os impactos anticompetitivos desse modelo, segundo a SRE.
- Um exemplo destacado no relatório é a maneira como marketplaces podem influenciar vendedores e consumidores de forma desigual.
3. Uso Estratégico de Dados
O relatório sublinha que o controle de grandes volumes de dados é visto pela SRE como um ativo estratégico que amplia o poder de mercado das plataformas digitais, dificultando a entrada de novos competidores.
- A SRE considera que plataformas que controlam grandes quantidades de dados obtêm vantagens significativas em termos de inovação e personalização.
- O acesso exclusivo a dados pode, segundo o relatório, criar barreiras à entrada para concorrentes menores.
- A SRE sugere que o impacto do controle de dados sobre a concorrência pode não ser adequadamente capturado pela regulação atual.
4. Ecossistemas Digitais Complexos
O relatório observa que plataformas digitais criam ecossistemas complexos, oferecendo uma variedade de produtos e serviços interconectados. Segundo a SRE, isso pode dificultar a concorrência e criar dependência dos usuários, dificultando a migração para serviços concorrentes (o chamado “efeito lock-in”).
- A SRE afirma que a oferta integrada de serviços pode restringir a capacidade de concorrentes menores competirem de maneira justa.
- Esses ecossistemas, conforme o relatório, tornam difícil para os consumidores mudarem de plataforma, uma vez que estão amarrados a múltiplos serviços.
- A SRE vê esse controle sobre um ecossistema digital como um fator que pode reduzir a inovação.
5. Amarração e Bundling
Outra preocupação levantada pela SRE é a prática de amarração (ou “bundling”), em que as plataformas oferecem produtos ou serviços adicionais vinculados a uma oferta principal. A SRE sugere que essa prática pode restringir a concorrência ao limitar as opções dos consumidores.
- Conforme o relatório, a amarração pode ser usada para criar dependência de serviços adicionais, dificultando a adoção de alternativas concorrentes.
- A SRE afirma que essa prática pode prejudicar a inovação ao reduzir a competitividade de outras empresas que oferecem produtos individuais.
- A visão apresentada é que as ferramentas regulatórias atuais não estão suficientemente preparadas para lidar com essa prática no contexto digital.
6. Dificuldade na Definição de Mercado
O relatório também destaca o que a SRE considera uma dificuldade em definir o mercado relevante no contexto digital. De acordo com a SRE, as plataformas muitas vezes operam em diversos setores simultaneamente, complicando a análise concorrencial.
- A SRE argumenta que a definição tradicional de mercado, focada em produtos específicos, não se aplica facilmente às plataformas digitais.
- O relatório sugere que a falta de clareza na definição de mercado pode dificultar a análise de práticas anticompetitivas.
- A SRE aponta que a multiplicidade de serviços oferecidos pelas plataformas digitais torna difícil avaliar onde a concorrência está sendo afetada.
7. Barreiras à Inovação
Por fim, o relatório sugere que a concentração de poder em grandes plataformas pode criar barreiras à inovação. Segundo a SRE, plataformas dominantes podem controlar o ritmo da inovação no setor ao adquirir startups inovadoras ou ao estabelecer padrões tecnológicos que limitam o surgimento de alternativas.
- A SRE considera que plataformas dominantes podem restringir o surgimento de novos concorrentes ao adquirir tecnologias inovadoras.
- Segundo o relatório, o controle sobre a inovação pode dificultar o desenvolvimento de soluções alternativas por parte de startups e concorrentes menores.
- A visão da SRE é que essa concentração de poder pode reduzir a diversidade de inovação nos mercados digitais.
Resumo das Propostas
Após identificar os principais desafios concorrenciais apresentados pelas plataformas digitais, a Secretaria de Reformas Econômicas (SRE) do Ministério da Fazenda propôs um conjunto de 12 medidas para modernizar o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC). Essas propostas, segundo a SRE, têm como objetivo adaptar a regulação brasileira às especificidades dos mercados digitais, que apresentam características como efeitos de rede, uso intensivo de dados e mercados de múltiplos lados. As mudanças visam garantir que a concorrência seja preservada e que práticas anticompetitivas sejam combatidas.
O relatório distingue as propostas entre medidas que exigem mudanças legislativas, por meio de projetos de lei, e aquelas que podem ser implementadas por meio de ajustes infralegais, como resoluções ou normativas do CADE e outros órgãos reguladores.
As medidas legislativas incluem mudanças estruturais na Lei 12.529/2011, como a revisão dos critérios de análise de fusões e aquisições e a definição de novas regras para plataformas de relevância sistêmica. Já as medidas infralegais propõem, por exemplo, a criação de uma unidade especializada dentro do CADE e o estabelecimento de novas obrigações de transparência para plataformas designadas, que podem ser aplicadas por meio de regulamentos.
A seguir, um resumo detalhado das 12 propostas, especificando quais delas requerem mudanças legislativas e quais podem ser implementadas por meio de medidas infralegais.
Eixo 1 – Propostas específicas de alterações legislativas para a promoção da concorrência nos casos específicos envolvendo plataformas com relevância sistêmica:
1. Designação de plataformas de relevância sistêmica
Conforme o relatório, a proposta prevê que o Cade tenha a competência para designar plataformas digitais como “sistemicamente relevantes”, com base em critérios qualitativos e quantitativos. Critérios qualitativos incluem presença em mercados de múltiplos lados, efeitos de rede, integrações verticais e acesso a grandes volumes de dados. O critério quantitativo seria o faturamento mínimo, tanto global quanto no Brasil. Plataformas que não atingirem esse patamar de faturamento poderão ser excluídas da designação (safe harbour).
- Medida legislativa: Definição legal dos critérios qualitativos e quantitativos e do procedimento de designação de plataformas.
2. Introdução de obrigações procedimentais e de transparência para plataformas de relevância sistêmica
O relatório propõe que plataformas designadas como “sistemicamente relevantes” cumpram obrigações de transparência e notificação prévia de atos de concentração. Essas plataformas deverão garantir que informações comerciais e relacionadas ao uso de dados sejam claras para os usuários finais e profissionais.
- Medida legislativa: Inclusão dessas obrigações na legislação para plataformas designadas.
3. Estabelecimento de um procedimento de investigação para plataformas designadas
A proposta inclui o estabelecimento de um procedimento formal para que o Cade investigue as plataformas designadas como sistemicamente relevantes. As investigações podem resultar na imposição de obrigações substantivas ajustadas a cada plataforma, dependendo das conclusões da investigação.
- Medida legislativa: Criação de um processo formal de investigação e definição das obrigações que podem ser impostas às plataformas.
4. Criação de uma unidade especializada no Cade para mercados digitais
O relatório sugere a criação de uma unidade especializada no Cade voltada exclusivamente para o monitoramento de mercados digitais e a implementação de novas ferramentas regulatórias. Essa unidade seria responsável pela designação de plataformas e pelo acompanhamento das obrigações impostas.
- Medida legislativa e infralegal: Criação formal da unidade por meio de ajustes na estrutura do Cade, com competências definidas por lei ou regulamento interno.
5. Implementação e monitoramento das obrigações em cooperação com outros reguladores
O relatório propõe que o Cade coopere com outros reguladores, como a ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados) e a ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações), para implementar e monitorar as obrigações impostas às plataformas designadas. A colaboração entre as entidades poderá ser necessária para garantir que as obrigações sejam cumpridas.
- Medida legislativa e infralegal: Formalização da cooperação entre órgãos, podendo exigir base legal e regulamentação infralegal.
6. Fortalecimento das competências do Cade para realizar estudos de mercado
O relatório propõe o fortalecimento do Departamento de Estudos Econômicos (DEE) do Cade, ampliando sua capacidade de conduzir estudos de mercado em setores digitais. Esses estudos poderão ser conduzidos por iniciativa própria ou a pedido de outros órgãos, a fim de avaliar práticas concorrenciais em mercados específicos.
- Medida legislativa: Alteração da legislação para conferir ao DEE os poderes necessários para conduzir estudos mais amplos e detalhados.
7. Criação de um fórum de cooperação interinstitucional entre o Cade e outros órgãos federais
A proposta sugere a criação de um fórum de cooperação entre o Cade e órgãos federais, como a ANPD, ANATEL e Senacon, voltado para discutir e coordenar ações relacionadas à regulação de plataformas digitais e à promoção da concorrência nesses mercados.
- Medida infralegal: Instituição do fórum por meio de resoluções conjuntas entre os órgãos.
Eixo 2 – Propostas de ajustes na aplicação das ferramentas antitruste já existentes para promover a concorrência em mercados digitais:
8. Revisão de guias, diretrizes e práticas do Cade
O relatório sugere que o Cade revise seus guias e diretrizes para aprimorar a avaliação de riscos concorrenciais relacionados às plataformas digitais. Isso incluiria a análise de efeitos de rede e ecossistemas digitais.
- Medida infralegal: Revisão interna dos guias e diretrizes do Cade.
9. Revisão do formulário de notificação de atos de concentração
O formulário de notificação de atos de concentração utilizado pelo Cade será revisado para incluir questões relacionadas a mercados digitais, como o impacto do controle de dados e a integração vertical entre serviços digitais.
- Medida infralegal: Alteração do formulário por meio de regulamentação interna do Cade.
10. Adoção do rito ordinário para análise de atos de concentração envolvendo plataformas com elevado número de usuários
O relatório sugere que o Cade adote o rito ordinário para a análise de atos de concentração envolvendo plataformas com grande número de usuários e que atendam aos critérios de faturamento mínimo, possibilitando uma análise mais detalhada.
- Medida infralegal: Definição das condições para a adoção do rito ordinário por meio de diretrizes do Cade.
11. Submissão de atos de concentração ao Cade em casos de risco à concorrência
O Cade poderá requisitar a submissão de atos de concentração que, mesmo sem atingir os critérios formais de notificação obrigatória, apresentem riscos à concorrência. Isso pode ocorrer em casos que envolvem integração vertical ou maior controle sobre dados concorrencialmente sensíveis.
- Medida legislativa e infralegal: A legislação já permite essa medida, mas sua aplicação pode ser ajustada por regulamentações específicas.
12. Atualização da Portaria Interministerial nº 994/2012 para elevar os valores de faturamento para notificação prévia obrigatória
O relatório propõe a atualização dos valores de faturamento bruto que determinam a notificação prévia obrigatória ao Cade, permitindo que o órgão concentre esforços em operações com maior potencial de impacto sobre a concorrência.
- Medida infralegal: Atualização da portaria por meio de regulamentação conjunta entre os ministérios envolvidos.
Os interessados podem assistir à coletiva de imprensa através do link: Ministério da Fazenda – Coletiva 10/10/2024 e acessar mais detalhes sobre a tomada de subsídios em Participa+ Brasil.