Conselho Digital: DMA entra em vigor e Brasil deve ser cauteloso ao olhar modelo europeu

Hoje, 6 de março de 2024, entra plenamente em vigor o Ato dos Mercados Digitais (DMA) na União Europeia (UE). O DMA, uma experimentação regulatória dos legisladores europeus, foi proposto com o objetivo de assegurar justiça e equidade nos mercados digitais. Adotando uma abordagem regulatória proativa, ou “ex ante”, o DMA visa prevenir infrações e desequilíbrios no mercado antes de sua ocorrência, contrastando com a abordagem reativa – “ex post” – baseada na correção de práticas anticompetitivas estabelecidas, seguindo a tradição da lei antitruste.

O Digital Markets Act (DMA) estabelece uma série de obrigações específicas para as grandes plataformas digitais, classificadas como “gatekeepers” ou “controladores de acesso”. Entre as obrigações de ação (“do’s”), os “gatekeepers” são obrigados a permitir que os usuários finais removam aplicativos pré-instalados, a garantir a compatibilidade e acessibilidade de aplicativos de terceiros com seu sistema operacional, e a prover aos anunciantes e editores, sem custos, acesso a ferramentas de medição de desempenho e informações necessárias para a verificação independente de inventários de anúncios.

Por outro lado, o DMA estipula uma série de proibições direcionadas aos ‘gatekeepers’, visando evitar comportamentos que supostamente prejudicam a concorrência. Estas incluem a proibição de combinar dados pessoais sem consentimento explícito, a impossibilidade de inscrever usuários automaticamente em serviços complementares para fins de coleta de dados, a limitação de práticas que restringem reclamações de usuários comerciais a entidades regulatórias, o veto ao agrupamento de serviços de maneira prejudicial à concorrência, e a proibição de favorecer produtos ou serviços próprios em detrimento de terceiros nas suas plataformas.

Embora ainda não se tenha evidências da efetividade do DMA, a proposta europeia já tem influenciado legisladores em todo o mundo, incluindo o Brasil. No entanto, é importante se destacar que o grau de intervenção de suas regras e restrições tem levantado alertas sobre possíveis consequências não intencionais do Ato. Críticos têm apresentado preocupações quanto a custos regulatórios excessivamente onerosos e amarras à inovação, o que tornaria o ambiente europeu menos atrativo para investidores. Mas também têm destacado como o DMA pode, ao cabo, reduzir benefícios aos próprios usuários finais.

Mas prevenir não é melhor que remediar?

Certamente, a prevenção é essencial para mitigar riscos antes que eles se materializem, estabelecendo um ambiente de mercado digital mais seguro e justo. No entanto, é crucial equilibrar as medidas preventivas com a flexibilidade necessária para promover a inovação e o crescimento. Isso exige uma abordagem regulatória que seja dinâmica e adaptável, capaz de responder às rápidas evoluções tecnológicas sem sufocar o potencial criativo ou a competitividade do mercado.

A regulação concorrencial ex-ante é inicialmente atraente por oferecer segurança jurídica, estabelecendo as regras do mercado antecipadamente. Esta abordagem é especialmente relevante em setores com falhas de mercado evidentes (ex: setor de telefonia ou energia), atuando preventivamente contra distorções. No entanto, a segurança jurídica proporcionada por esta abordagem traz consigo uma rigidez que pode impedir ajustes necessários à dinâmica de mercados em constante mudança, representando um risco particular em setores dinâmicos e inovadores. Assim, as inovações disruptivas desafiam as regulações ex-ante devido à sua capacidade de transformar radicalmente os mercados, tornando a avaliação prévia dos seus impactos ainda mais crítica.

A intervenção regulatória ex-ante sem uma análise cuidadosa e criteriosa dos impactos das inovações pode ser prematura e contraproducente. Aplicar regulações ex-ante precocemente pode, inadvertidamente, proteger os primeiros inovadores contra avanços futuros que prometem elevar o bem-estar geral, ao barrar inovadores subsequentes. Em outras palavras, se as empresas que hoje são vistas como gigantes digitais e pioneiras se firmarem definitivamente em suas posições por meio de regulações ex-ante, e com isso, novos concorrentes encontrarem barreiras maiores para entrar no mercado, essas empresas poderão também se desinteressar pela inovação e investimento contínuos. Assim, os inovadores mais ousados de hoje podem se tornar os incumbentes confortáveis de amanhã, que poderão acabar buscando ou aceitando regulações para preservar suas vantagens. Consequentemente, a regulação ex-ante pode acabar reforçando a posição dos atuais líderes de mercado ao criar barreiras regulatórias para os que chegam.

Em suma, a regulação antitruste deve se concentrar na identificação e combate a condutas efetivamente prejudiciais, evitando regulamentações baseadas em suposições teóricas de dano. Isto sublinha a importância de uma análise minuciosa sobre os custos e benefícios das intervenções estatais, afastando-se de proibições que possam reprimir indevidamente comportamentos que são fundamentais para a concorrência, inovação e eficiência. Neste sentido, a intervenção ex post oferece uma abordagem mais flexível, capaz de ajustar-se às mudanças tecnológicas e de mercado.

Desta forma, antes de propor novas legislações, é imperativo explorar o aprimoramento e a aplicação efetiva da legislação de defesa da concorrência já existente no Brasil, dada sua flexibilidade e capacidade de adaptação às novas realidades do mercado.

Mas afinal, a Europa não é um bom modelo?

Antes de tudo, é crucial que se diga que não existe uma corrida por regulação, e sim por inovação. Nesse sentido, deve-se observar que a cultura regulatória da Europa tem limitado consideravelmente o crescimento de startups e a expansão de empresas estabelecidas pelo continente. Isso é evidente na comparação com empresas dos EUA e China, que investem mais em pesquisa e desenvolvimento e apresentam maior crescimento de receita e retorno sobre o capital. De fato, a presença limitada de empresas europeias entre os líderes de mercado tecnológico levanta questões sobre a efetividade das políticas europeias e sobre as intenções protecionistas de suas regulações.

O Conselho Digital acredita que é precipitado para outras jurisdições adotarem a estratégia do DMA sem antes realizar uma análise crítica sobre a real necessidade ou a vantagem deste modelo regulatório. A discussão sobre a implementação de regulações específicas para lidar com plataformas digitais traz à tona o desafio de encontrar um equilíbrio entre a promoção da inovação e a prevenção de práticas anticompetitivas. Neste contexto, é fundamental que qualquer nova regulação seja cuidadosamente ponderada para combater e prevenir danos claros decorrentes da falta de concorrência, sem, contudo, inibir o dinamismo inovador dos mercados digitais.

Em nosso caso, o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer para desenvolver seus mercados digitais. A implementação de uma legislação semelhante ao DMA poderia atrapalhar a inclusão digital e o desenvolvimento de um ecossistema digital competitivo e inovador. Em contraponto, uma regulação adaptativa, apoiada por uma colaboração entre reguladores, plataformas digitais, e consumidores, pode assegurar que os benefícios das inovações digitais sejam maximizados enquanto se mitigam riscos potenciais, estabelecendo um equilíbrio entre crescimento econômico, inovação, e proteção ao consumidor.

O que o Conselho Digital pensa?

Ao avaliar o DMA e suas implicações, o Conselho Digital enfatiza a importância de uma abordagem regulatória que promova um equilíbrio entre inovação e competição justa. Enquanto aprendemos com o exemplo europeu, é essencial adaptar essas lições ao contexto brasileiro, considerando as especificidades do nosso ecossistema digital.

Independentemente das abordagens regulatórias, a colaboração entre reguladores, indústria e consumidores, juntamente com uma política baseada em evidências, é fundamental para garantir que a regulação fomente a inovação, proteja os consumidores e sustente o crescimento econômico. Uma saída ao nosso alcance envolve mecanismos de coordenação institucional. Eles são centrais para garantir que a regulação seja efetiva, coesa e capaz de se adaptar às rápidas mudanças tecnológicas e de mercado. Acreditamos que estabelecer protocolos claros de cooperação, fóruns de diálogo interinstitucional e unidades especializadas são alternativas que podem ajudar a superar desafios regulatórios complexos no ambiente digital.

Brasília, 06 de março de 2024

CONSELHO DIGITAL