Taxa de Uso de Rede: por que é ruim para a internet?

A discussão sobre a implementação de uma “taxa de uso de rede”, também conhecida como “fair share” ou “network fee”, tem ganhado destaque no cenário das telecomunicações. As grandes operadoras de telecomunicações (Big Teles) estão pressionando pela criação dessa taxa, alegando a necessidade de compartilhar os custos do crescente tráfego de dados na internet. O assunto inclusive foi objeto de consulta pela Anatel.

No entanto, existem fortes contra-argumentos contra essa medida, que sugerem que ela pode ser prejudicial para a economia digital e para os usuários finais.

O Que As Big Teles Alegam x Contra-argumentos

1. Argumento do setor de telecomunicação: “o tráfego de internet ocorre por meio do fluxo de dados decorrentes de seus serviços e, sem, por sua vez, uma contribuição para seu custeio pelos apps”

Contra-argumento 1.1: Os aplicativos não geram o tráfego de dados

Assim como uma chamada telefônica é gerada por quem liga e não por quem recebe a ligação, o tráfego de dados é gerado pelos usuários finais que requisitam dados dos aplicativos, não pelos próprios aplicativos. Neste ponto, é importante que se diga, os usuários finais, que já pagam pelo acesso à internet. Cobrar uma taxa de uso de rede pode impactar serviços importantes como telessaúde, educação à distância e plataformas de streaming, potencialmente reonerando o usuário.

Contra-argumento 1.2: Os aplicativos já investem na rede de telecomunicações

Entre 2011 e 2021, os provedores de aplicações de internet investiram aproximadamente 883 bilhões de dólares em infraestrutura digital pelo mundo. incluindo centros de dados, cabos submarinos e terrestres, e redes de entrega.

Esses investimentos são focados em três principais segmentos:

  1. Hospedagem (ex.: centros de dados) – localizando centros de dados próximos aos principais grupos de usuários, a latência é reduzida e a eficiência do tráfego de rede é melhorada. Centros de dados oferecem escalabilidade fácil, permitindo a adição ou remoção de recursos conforme a demanda, otimizando custos.
  2. Transporte (ex.: cabos submarinos e terrestres) – são os principais meios de transporte de dados entre continentes e dentro de países.
  3. Redes de entrega (ex.: interconexão e armazenamento em cache) – Ao distribuir o conteúdo através de uma rede de servidores localizados em vários pontos, a carga no backbone da rede principal é reduzida, diminuindo custos com largura de banda e melhorando a resiliência da rede.

Contra-argumento 1.3: Não existe paralelo em outras redes de infraestrutura


Em resumo, cobrar dos aplicativos uma taxa de rede pelo tráfego na rede de telecomunicações seria como cobrar de uma fabricante de automóveis pelo trânsito em uma cidade. Ou como cobrar pela fabricante de eletrodomésticos pelo tráfego de eletricidade gerado pela geladeira que ela fabricou.

2. Argumento do setor de telecomunicação: “mas está ocorrendo uma explosão do tráfego de dados…”

Contra-argumento 2.1: A projeção do crescimento do tráfego de dados é estável

As projeções indicam que não há cenários de congestionamento na infraestrutura digital do Brasil nos próximos anos.

REIS, José Guilherme; GUARANYS, Marcelo. (2024). Projeções da Demanda por Tráfego de Dados no Brasil: Uma Atualização. Estudo Econômico – Paper 1.

Boa parte da infraestrutura necessária inclusive já está prevista no Edital do 5G e em outras políticas públicas já existentes.

Contra-argumento 2.2: Custos incrementais de transporte de dados por fibra fixa são insignificantes

Mesmo em uma situação onde a demanda por dados esteja crescendo, ainda que em um ritmo mais lento, vale notar que as tecnologias de fibra são amplamente insensíveis ao tamanho tráfego.

Em outras palavras, os custos incrementais de transporte de dados aumentados sobre redes de fibra fixa são próximos de zero ou insignificantes.

O crescimento do tráfego não implica necessariamente em aumento de custo, mas sim em aumento de receita.

Contra-argumento 2.3: Quaisquer novos valores repassados às big teles não serão reinvestidos em infraestrutura e sim se tornará receita

Não há garantias de que os recursos obtidos com a taxa de rede seriam aplicados na expansão da rede. Esses recursos adicionais provavelmente aumentariam os lucros distribuídos aos acionistas das operadoras, em vez de serem reinvestidos em infraestrutura.

O exemplo de insucesso da Coréia do Sul mostra que network fees visam aumentar as receitas das grandes operadoras, podendo reduzir a demanda por serviços de conectividade e esta medida pode impor custos adicionais aos usuários finais e provedores de SVA, resultando em internet mais cara e de pior qualidade.


3. Argumento do setor de telecomunicação: “mas as Big Techs pagam pouco imposto…”

Contra-argumento 3.1: As empresas de tecnologia sediadas no brasil têm uma alta carga tributária

Antes de tudo, a taxa pode incidir também sobre serviços de telessaúde ou teleeducação que serão grandes usuários das redes em pouco tempo.

Por fim, todas as grandes plataformas possuem sede no Brasil e figuram entre os maiores pagadores de impostos do país.

4. Argumento do setor de telecomunicação: “mas os apps estão competindo com as teles e isso tem impacto financeiro…”

Contra-argumento 4.1: Existe uma relação simbiótica e a demanda por conteúdo pelos clientes das teles impulsiona também a demanda por acesso à banda larga

Sob a perspectiva comercial, provedores de serviços de telecomunicações tanto de âmbito nacional quanto regional ofertam uma variedade de vantagens quanto a Serviços de Valor Adicionado como uma tática para se destacarem no mercado.

Contra-argumento 4.2: Existe uma relação simbiótica e a demanda por apps tem gerado receita financeira para as teles

Sob a perspectiva financeira, também se verifica uma relação de mutualismo. A Telefônica Brasil, por exemplo, foi transparente com seus investidores sobre essa relação em seu relatório de resultados financeiros do 4º trimestre de 2021, citando sua parceria com grandes serviços de streaming como razão para o sucesso da empresa em superar a concorrência.

Contra-argumento 4.3: Existe uma relação simbiótica e os serviços são complementares

Ao analisarmos alguns mercados a complementaridade dos serviços fica evidente. Vejamos o casos da Espanha, onde o declínio do uso do SMS ocorreu mesmo antes do surgimento de aplicativos de mensagem. Por outro lado, ao surgirem os aplicativos de mensagem, as operadoras passaram a aumentar sua receita com venda de pacote de dados.

Fonte: IDATE, baseado em dados da CNMC (regulador espanhol)

Conclusão

A implementação de uma taxa de rede representa uma medida contraproducente que pode aumentar os custos para os usuários finais e os provedores de SVA, resultando em uma internet mais cara e de pior qualidade. Além disso, não há garantias de que esses recursos seriam reinvestidos em infraestrutura.